10 de out. de 2023
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Relação entre capital e trabalho ganha nova configuração

10.10.23

 *Reportagem publicada na 1ª edição do Anuário da Justiça Direito Empresarial. A versão online é gratuita (clique aqui para ler) e a versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui para comprar)


ARTHUR GANDINI
, via ConJur

O empresário Oséias Gomes, 50, criou a sua rede de franquias de clínicas odontológicas na garagem de sua em casa em Ponta Grossa (PR) em 2009. Não imaginava, então, que chegaria a ser responsável de forma direta por uma equipe de 400 trabalhadores e, de maneira indireta, pelos empregados de mais de 1.200 franquias do seu negócio. Também não imaginava que o mundo do trabalho passaria por tantas mudanças.

“Trato meus colaboradores como uma contribuição fundamental aos negócios”, conta o empresário, que é o CEO da Odonto Excellence e autor de livros na área empresarial. Gomes é apenas um dos milhares de empresários brasileiros que buscam ter atenção com a forma como se relacionam com seus colaboradores de olho nas alterações legislativas, na tecnologia e na tentativa de evitar disputas judiciais.

A regulação das relações trabalhistas no Brasil está condensada na famigerada CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o Decreto 5.452 de 1º de maio de 1943, baixado em pleno Estado Novo de Getúlio Vargas. Foi a CLT que garantiu legalmente direitos trabalhistas básicos como descanso semanal remunerado, jornada de trabalho de 8 horas, férias de 30 dias e décimo terceiro salário.

Instituiu também a organização e a contribuição sindical. Inicialmente, estipulava a estabilidade no emprego após 10 anos de serviço na mesma empresa, garantia que foi substituída anos mais tarde pelo FGTS. A contribuição à previdência, com vistas à aposentadoria, também foi um direito agregado ao portfólio trabalhista.

O estudo mais recente do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços e do Movimento Brasil Competitivo aponta que o chamado Custo Brasil, o índice que expressa a dificuldade de fazer negócios no país, foi de R$ 1,7 trilhão em 2021. Deste total, entre R$ 310 bilhões e R$ 360 bilhões se referem ao custo do capital humano para as empresas, o que compreende a sobrecarga resultante da capacitação insuficiente da força de trabalho, os encargos trabalhistas que oneram a folha de pagamentos de pessoal e a judicialização das relações de emprego.


O estudo mostra que, em termos reais, naquele ano as empresas pagaram R$ 32 bilhões relativos às reclamações na Justiça do Trabalho (em 2022 foram R$ 38 bilhões). A cifra corresponde a 4% da massa salarial paga no período, que foi de R$ 877 bilhões. Considerando o pagamento de todos os direitos e benefícios que não correspondem ao tempo efetivamente trabalhado, os encargos trabalhistas, sociais e previdenciários que incidem sobre a folha podem chegar a 95% do salário recebido pelo trabalhador. Isso inclui direitos básicos como férias, décimo terceiro salário e descanso semanal remunerado, além de contribuição previdenciária e FGTS e mais salário, educação, Fundo de Acidente de Trabalho e contribuições ao Sistema S.

Chama a atenção no estudo do Mdic/MBC, ainda, a litigiosidade na área de trabalho no Brasil, com uma média de 26.800 processos por um milhão de habitantes, contra 34 processos por milhão de habitantes dos países que integram a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Embora o estudo afirme que o prazo de tramitação de uma ação pelos tribunais brasileiros chegue a 1.151 dias (três anos e dois meses), vale lembrar que na Justiça do Trabalho de primeiro grau este prazo, em 2021, foi de 223 dias (oito meses), índice similar ao dos países da OCDE.

Apesar de ter sofrido inúmeras alterações ao longo de seus 80 anos de existência, a CLT sempre mereceu críticas dos setores mais liberais e do empresariado em geral. A última grande reforma ocorreu no governo Michel Temer, com a aprovação da Lei 13.467/2017. Entre as mudanças introduzidas está a determinação de que acordos trabalhistas devem prevalecer sobre o que está previsto na legislação; a contribuição sindical deixou de ser obrigatória; e foi legalizada a terceirização de mão de obra para a atividade-fim, bem como o trabalho intermitente e temporário e o trabalho remoto. A reforma introduziu ainda dispositivo que prevê que o trabalhador que perder a ação terá de pagar honorários de sucumbência. Antes ele estava isento desse encargo, mesmo que perdesse a causa.

A reforma foi feita com o propósito de flexibilizar a relação empregado e empregador, garantir maior segurança jurídica para o empregador, ampliar as modalidades de contrato de trabalho e restringir direitos trabalhistas. Com isso, a CLT e o emprego em sua forma convencional deixam de ser os únicos parâmetros para as relações de trabalho.

“Se você quer seguir carreira fixa em uma empresa, talvez o regime CLT seja a sua melhor opção. Agora, se a sua vontade é se estabelecer como um profissional autônomo, com menos garantias, mas com mais liberdade econômica, vale a pena se tornar um MEI”, diz o empresário Oseias Gomes. O microempreendedor individual é um trabalhador com autonomia de empresário e que mantém algumas das benesses da CLT, como a possibilidade de se aposentar pelo INSS com menor custo.

Para o ministro Lelio Bentes Corrêa, presidente do TST, qualquer alteração na legislação trabalhista deve ocorrer a partir de um processo de diálogo social. “A razão de ser da CLT é proporcionar um ambiente de trabalho com reconhecimento de direitos, democratizando as relações entre trabalhadores e empresas. O comportamento que se espera de ambas as partes é o respeito à lei e um ambiente de efetivo diálogo para que as tensões da relação entre capital e trabalho sejam resolvidas por meio consensual”, pontua.

As alterações na legislação e na jurisprudência têm resultado em um debate acerca do papel do Judiciário neste cenário. Para Douglas Alencar Rodrigues, ministro do TST, as relações entre as empresas e os trabalhadores passam hoje por um momento de mudança. “A Justiça do Trabalho foi concebida para harmonizar conflitos individuais e coletivos do mundo do trabalho. Assistimos a uma acirrada disputa de narrativas entre as virtudes e vícios dos dois modelos normativos, o primeiro, em que o Estado seria o grande protagonista da proteção social, e o segundo, em que os atores sociais, respeitando um núcleo mínimo de direitos considerados indisponíveis, teriam ampla permissão legislativa para firmar contratos coletivos”, analisa.

Silvia Monteiro, advogada especialista em Direito do Trabalho e sócia do escritório Urbano Vitalino Advogados, avalia que há hoje duas visões sobre o papel da Justiça do Trabalho. Uma delas tende a tratar o trabalhador como parte hipossuficiente na relação com o empregador e pode ser chamada de “Justiça Trabalhista”. Já outros entendem que o foco do julgador deve ser a preservação da fonte de trabalho e que suas decisões preservem os interesses de todos os trabalhadores, e não o emprego de um indivíduo. “Em razão dos princípios do Direito do Trabalho, da hipossuficiência do empregado, existe uma tendência natural de proteção do trabalhador. O problema existe quando esta proteção é exacerbada”, defende.

Para Estácio Airton Moraes, advogado da AB&M Sociedade de Advogados, a visão paternalista da Justiça do Trabalho é coisa do passado. “Os quadros da magistratura trabalhista se renovaram com juízes preparados, imparciais e técnicos, pautando as decisões de acordo com o conjunto de provas dos autos.”

O Placar de Votação do Anuário da Justiça Brasil, que indica a tendência jurisprudencial de ministros e colegiados do TST, confirma essa hipótese. O quadro das edições 2022 e 2023 registrou uma prevalência de posições mais favoráveis às empresas na Seção de Dissídios Coletivos, na Subseção 2 de Dissídios Individuais e nas 1ª e 4ª Turmas. Já a Subseção 1 de Dissídios Individuais, assim como nas 3ª, 5ª, 6ª e 7ª Turmas se mostraram mais favoráveis aos trabalhadores. A 2ª e a 8ª Turmas mostraram posição de equilíbrio.

A intervenção da Uber no mundo do trabalho, ao criar uma relação de trabalho em que o empregador é um aplicativo, já gerou até um neologismo, a uberização, em referência ao vínculo de trabalho não palpável em que a outra parte da relação seria uma coisa e não uma pessoa. O certo é que as inovações tecnológicas geraram um novo paradigma nas relações de trabalho, prenúncio de uma provável extinção do emprego tal como é conhecido hoje.

Para o ministro Douglas Alencar Rodrigues, a popularização do home office após a epidemia de covid-19 é uma conquista trabalhista, mas foi com a epidemia que se percebeu a importância e a necessidade de incorporação efetiva das tecnologias de comunicação ao universo das relações de trabalho. “Como efeito direto, espaços físicos foram reduzidos, com impactos no mercado imobiliário, mas com a geração de economia de recursos e ampliação da capacidade de investimentos e de obtenção de resultados”, pontua.

Outra preocupação que passou a existir foi com a segurança da informação contida na relação existente entre as empresas e os trabalhadores. A ideia é evitar o vazamento de dados e informações sensíveis da empresa. “O relacionamento passou a dar relevância para dados, informações e resultados. A certificação digital é de extrema necessidade para que as pessoas possam ser reconhecidas no ambiente virtual. Dar o poder para um funcionário agir em nome da empresa, acessar documentos e informações”, explica Klaus Riffel, advogado e CEO da startup Whom, empresa que fornece certificados digitais para escritórios de advocacia.

O advogado José Eduardo Gibello Pastore, consultor de relações trabalhistas e sócio do Pastore Advogados, avalia que a tecnologia tem sido tanto positiva como negativa para as empresas. “Positiva por terem reduzido custos com o trabalho virtual. Mas há um lado negativo quando as empresas não observam os cuidados e passam a responder ações trabalhistas com pedidos de horas extras, por exemplo.”

A atuação dos departamentos jurídicos das empresas é fundamental para evitar litígios trabalhistas ou para lidar com eles quando a judicialização se torna inevitável. Para Maria da Gloria Chagas Arruda, Head Jurídico Cível, Trabalhista e Criminal do Santander Brasil, “um dos principais pilares para o desenvolvimento econômico de qualquer sociedade moderna está ligado à gestão da sua força de trabalho. Quanto maior a segurança jurídica nas relações laborais, maior será a atratividade de investimentos”, afirma.

É papel do departamento jurídico decidir de forma estratégica o caminho que a empresa irá escolher para lidar com disputas trabalhistas na Justiça. A mediação, a conciliação e a arbitragem surgem como métodos alternativos de solução dos conflitos. Sandra Gebara, diretora executiva do departamento jurídico da Latam, lembra que a judicialização traz custos para as empresas, riscos à imagem e insegurança jurídica.

“Em algumas situações, é necessária pela impossibilidade de os temas serem resolvidos de forma amigável. Mas o papel do departamento jurídico deve ser o de tentar antecipar riscos para evitar problemas futuros em relações com profissionais, sindicatos e stakeholders diversos. O diálogo deve ser sempre a primeira alternativa”, defende.

“O departamento pode conseguir identificar os indicadores de desempenho de qualquer operação, sinalizando onde e quando houve falha da empresa e, a partir daí, criar as correções necessárias a fim de evitar os novos processos. Em situação de erro, o acordo será sempre a melhor solução. A arbitragem também se mostra como um procedimento favorável, com custo e tempo mais demorados que uma mediação, mas certamente inferiores aos de uma demanda judicial”, opina.

De acordo com números do DataJud/ CNJ, a Justiça do Trabalho celebrou 663 mil acordos de conciliações em 2022. O indicador segue em crescimento desde 2020, quando havia fechado em 510.582. Em 2022, 44,1% dos valores pagos por empresas ou trabalhadores teve como origem a celebração de acordos judiciais entre empresas e trabalhadores. Já números do ano anterior apontam que o estado de São Paulo conta com o maior volume de valores originados em acordos. Os Tribunais Regionais do Trabalho da 2ª e 15ª Região, com sede em São Paulo e em Campinas, alcançaram o índice de 72%. Juntos, somaram, naquele ano, a cifra de R$ 3,2 bilhões de valores pagos após acordos judiciais.

Rogerio Neiva, que foi juiz auxiliar da Vice-presidência do TST e é doutor em Ciências do Comportamento com foco em negociação de conflitos, afirma ser comum as empresas perderem a oportunidade de resolverem disputas trabalhistas por meio de acordos. “A resistência por parte de gestores e empresários decorre de dois receios. O primeiro consiste em achar que o adiamento da execução de eventual condenação pode ser financeiramente vantajoso; o segundo seria a crença de que acordos podem estimular outros empregados a ingressarem com ações no Judiciário. Se a empresa tem uma política e postura de acordo consistente o estímulo à litigância pode ser neutralizado”, pondera.

Para Andrea Bucharles, sócia do Salusse, Marangoni, Parente e Jabur Advogados, a dificuldade em homologar os acordos arbitrados na Justiça é hoje um desafio. “A utilização do instituto é pequena por conta das decisões contrárias à homologação, especialmente quando envolve cláusula de quitação integral do extinto contrato de trabalho. É necessária a interposição de recurso ordinário para obter-se a quitação, negada na primeira instância”, afirma.

Carolina Perroni Sanvicente, do Perroni Sanvicente & Schirmer Advogados e ex-coordenadora da área jurídica da rede varejista Lojas Renner, afirma que a arbitragem não costuma ser vantajosa na área trabalhista. “Isso se deve, em parte, aos custos elevados, uma vez que as partes respondem pelas despesas do árbitro e da infraestrutura de suporte. Além disso, a arbitragem pode não ser adequada para conflitos que envolvam direitos fundamentais ou questões de interesse público, que devem ser decididas pelo Judiciário”, acrescenta.

As legaltechs, empresas de tecnologia da área jurídica, também podem fazer a diferença na tentativa de evitar disputas na Justiça. Startup criada em 2018 tem auxiliado empresas a encontrarem soluções extrajudiciais para conflitos em diversas áreas como a trabalhista, a Pact organiza a base de dados jurídicos das companhias e simula cenários de resultados para encontrar o melhor caminho.

Em quatro anos, afirma ter alcançado mais de R$ 1,5 bilhão em negociações trabalhistas, além de ter reduzido os gastos de empresas ao mediar demissões. “A empresa foi fundada pelo incômodo que sentia vendo a dificuldade das empresas e escritórios de advocacia em terem transparência financeira e pragmatismo de solução sobre passivos judiciais”, conta Lucas Pena, CEO da startup e engenheiro pós-graduado em Direito da Infraestrutura. “A transformação da dinâmica dessas disputas não pode ser de responsabilidade exclusiva da Justiça do Trabalho. Deve ser compartilhada entre as partes”, finaliza.

 
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